quinta-feira, 19 de abril de 2007

Candido Portinari: Deus de violência

Estou com vida mas estive sempre à espera
De viver. Não sei por que estou isolado e só
Sentimos a inutilidade em existir. Se houver Deus
É de violência; nos deixa apodrecer ainda caminhando
É o dono de moléstias pavorosas. Alimenta
As dores dos recém-nascidos, do homem, da mulher
,Do velho e do cão.
Há repetição de ruídos
Furacões, lamento de crianças com fome
Andamos, mal-encarados, e com o pensamento
Em enganar alguém
. Desconfiados, temerosos
Das doenças incuráveis.
Ignoramos estarmos
Já inscritos numa delas.
Quem seriam aqueles três rasgados
E sem cara? Vinham a cavalo.
Mais próximos não davam impressão de gente,
Mas de três volumes se movendo como bandeiras
Esfarrapadas. Rentes a mim, estenderam
algo como uns braços, com vestígios
de dedos, segurando uma caneca de folha.
Eram restos de três criaturas
Espaventosas carregando a lepra.
Vinham das bandas do Triângulo.
Os sonsque emitiam eram como
Sombras de palavras.Meu pai chamou-os
para o almoço. Sentaram-se à nossa mesa.
Nós crianças olhávamos intimidados
Depois confraternizados. Quando se foram,perguntamos:
- Que santossão aqueles?
Os cavalos dos leprosos se parecem com eles.
Manchas no focinho e no corpo, o mesmo olhar
Mortiço e desacorçoado.Homem e cavalo
Vinham vagarosamente
De porta em porta. TeriamA mesma doença?
Arrepiados da cabeça aos pés,
O sol os acariciava, e se moviam lentamente.
Nas noites de treva
O cavalo era o guia, só ele enxergava.
Eram como dois irmãos. O alimento,
Repartido e o descanso também...
Seriam dois reis?
Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos
Vêm das terras secas e escuras;
pedregulhos
Doloridos como fagulhas de carvão aceso

Corpos disformes, uns panos sujos,
Rasgados e sem cor, dependurados
Homens de enorme ventre bojudo
Mulheres com trouxas caídas para o lado

Pançudas, carregando ao colo um garoto
Choramingando, remelento
Mocinhas de peito duro e vestido roto
Velhas trôpegas marcadas pelo tempo

Olhos de catarata e pés informes
Aos velhos cegos agarradas
Pés inchados enormes
Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas

No rumor monótono das alparcatas
Há uma pausa, cai no pó
A mulher que carregava uma lata
De água! Só há umas gotas – Dá uma só

Não vai arribar. É melhor o marido
E os filhos ficarem. Nós vamos andando
Temos muito que andar neste chão batido
As secas vão a morte semeando.

No povoado sonhandoViu o mar.
Um dia oVeria de verdade.
Passaram alguns dezembros.

Chegou à praiaSem saber se era dia ou noite,
Distante dali deixara o
Campo, os animais e as flores.

Faziam parte de sua
Vida de menino pobre.
Lembrava-se da chuva do rio e dos pássaros.
Não pôde ver o mar: estava cego.

Mulheres com dor-d’olhos cobertas de trapos e
Sempre grávidas. Saindo dos panos há uma cara
Canelas finas e feridentas. Desde o seu nascimento
Penam. Noite e dia trabalham. Muitas já cegas,
Os filhos tracomosos e opilados.

As mocinhas de dezesseis anos
Só trazem na boca uns cacos deDentes.
São assombrações.
Espantam as águas dosRios e o arvoredo.
Morrem trabalhando e
Ressurgirão no azul do céu vestidas de Lua.

Faltam-me as pernas.Tenho um braço e meus
Olhos são fracos.
O coração palpitandoSempre.

Vim da terra vermelha e doCafezal.

As almas penadas, os brejos e as matas virgens
Acompanham-me como o espantalho
,Que é meu auto-retrato.

Todas as coisas
Frágeis e pobres
Se parecem comigo.

Minha pupila estará cheia
De tanta gente? Mas está vazia...
Fantasmas movendo-se
Sem existência.

Levarei meus olhos fugindo
Procuro os escondidos inutilmente...
Na mediocridade – nem
Uma quinta-feira de folga...

Trabalham vestindo-os e o
Vento os move.Não entendem.
Tempo gastoÀ-toa à-toa.

Se soubesse conversar com a ervaMacia.
Sem jeito piso-a esmagando-aImpedido de um encontro desejado.

Agitam-se meus cabelosCorrendo.
Meus braços vão para
O sul e as pernas para o norte
Boneco Carlitiano.

Faltam-me as lágrimas e oEntendimento.
Não vejo a lua eNem o sol ao meio-dia...
Eu não existo talvez.

Me darão a morte em noite deLua?
Mas bom seria
Sem ninguém perto de mim.

Candido PortinariPortinari PoemasIniciativa: EPTV – Emissoras Pioneiras de TelevisãoRealização: Projeto Portinari1999

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